Religião é Veneno
Homeopatia - O físico e a pororoca
Autor: Fernando_Silva | Categoria: Ceticismo | Visualizações: 198 Comentários: 1
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Fernando_Silva
2023-Agosto-8
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O Físico e a Pororoca


José Colucci Jr., Ph.D.


É notória a má vontade dos especialistas para com os jornalistas que se encarregam da divulgação científica. É comum rotularem-se de superficiais as matérias sobre ciência e tecnologia, e de inconsequentes as sobre medicina e saúde. O que dizer, no entanto, de matéria como a que publicou A Folha de S.Paulo (8/2/01) sobre a homeopatia? A repórter que a assina usou dados da associação máxima da especialidade, consultou profissionais credenciados e ouviu o relato de empresas e pacientes em apoio à homeopatia. O que faz o leitor crítico diante desta e de muitas outras reportagens sobre a medicina dita alternativa? É fácil acusar de levianas matérias que divulguem terapias obscurantistas e carentes de valor científico, mas o que dizer da que promove uma especialidade médica que tem a benção do Conselho Federal de Medicina e da Associação Médica Brasileira, é utilizada na rede pública, conta com 15 mil profissionais cadastrados no país e ganha adeptos a cada dia?


Pedir que a imprensa seja mais responsável do que as duas entidades oficiais citadas seria ingênuo, mas não descabido. Quando os interesses mercadológicos de uma categoria falam mais alto do que o interesse público, a imprensa deveria ser a primeira denunciá-los – porque só interesses mercadológicos explicam o reconhecimento oficial da homeopatia. Se a homeopatia estiver certa, e existir no universo um princípio cujo efeito seja maior quanto mais diluído esteja, estão erradas a química, a física e a medicina modernas. No resto deste artigo, convido o leitor que não esteja disposto a abandonar as conquistas do pensamento científico a considerar as bases físicas da homeopatia.


O Físico e a Homeopatia


Em minha juventude tive a felicidade de conviver com Mário Schenberg, o grande astrofísico brasileiro. Num daqueles dias, surpreendi-o, de pijama e chinelos, na cozinha de sua casa na Avenida Dr. Arnaldo, em São Paulo, a separar, contar e colocar com todo o cuidado debaixo da língua vinte e tantos glóbulos brancos de um remédio homeopático. Tentei mostrar-lhe a incoerência: ele, um cientista famoso, utilizando-se de um método terapêutico para o qual não há qualquer comprovação científica. Falei das diluições extremas, da constante de Avogadro, da impossibilidade estatística de existir naquele produto uma molécula sequer do princípio ativo, e, em pouco tempo, lá estava eu, na petulância de meus vinte e poucos anos, a dar lições de química elementar ao homem que desenvolveu, com Chandrasekhar, o modelo estelar com núcleo isotérmico. Sempre bondoso, Mário não se aborreceu com a insolência. Disse apenas que se eu pretendia aplicar o método científico deveria antes inteirar-me de suas limitações, pois o método científico testa a validade da hipótese e mais nada. Não revela se a hipótese a ser testada é a única possível, ou sequer se é razoável. Para formular hipóteses é preciso imaginação, pois fazer ciência é um ato criativo. Minha hipótese, Mário esclareceu, era a de que o efeito terapêutico devia-se ao princípio ativo. Sob esse ângulo o raciocínio era perfeito: sem a presença do princípio ativo o remédio não funcionaria. O que eu não considerava era que o efeito terapêutico poderia dar-se através de outro fenômeno qualquer, por exemplo, pela modificação da estrutura molecular do solvente por ação do soluto.


Segundo essa hipótese alternativa, o solvente – água ou álcool – transformar-se-ia pelo simples contato com as moléculas do princípio ativo, e a eficácia do remédio não dependeria mais da presença daquelas moléculas. Mário disse essas coisas com um sorriso maroto nos lábios, o que, na época, imaginei dever-se ao prazer de confundir a cabeça do moleque impertinente. Hoje sei que não, mas essa é outra história [Mário Schenberg comprazia-se em questionar verdades aceitas e estabelecidas. Tinha sempre um ponto de vista original a contribuir. Toda e qualquer discussão era para ele um laboratório onde ideias eram ensaiadas e, então, descartadas ou selecionadas para futuro exame, conforme seu potencial. O fascínio de Mário pela arte e filosofia orientais e a ênfase que colocava na intuição como instrumento para o conhecimento foram usados como licença para atribuir-lhe uma vocação mística bem maior do que a que verdadeiramente tinha. Se tinha afinidade com alguma religião, era com o Budismo, uma religião sem Deus. Por razões que são fáceis de entender, o fato de Mário ter sido um dos primeiros a divulgar no Brasil Fritjof Capra e seu The Tao of Physics ganha mais ênfase entre os muitos que o conheceram superficialmente do que suas contribuições teóricas para a teoria dos dielétricos, teoria da ionização e da radiação de Cernkob, teoria clássica e quântica dos campos, relatividade geral, mecânica clássica e raios cósmicos].


Aprendi, graças a minha impertinência, que o método científico – ou, mais propriamente, o indutivo – também tem suas limitações. Tivesse eu, além da impertinência, um pouco mais de espírito crítico, teria percebido a falácia da hipótese alternativa sugerida por Mário. Teria usado Popper, recém-estudado no curso de pós-graduação, para contra-argumentar. Sendo como era, aceitei o argumento da autoridade. Se vinha de Mário Schenberg, tinha de estar correto. Meu único consolo é encontrar-me em boa companhia. A suspensão da razão crítica com relação a correntes filosóficas místicas, terapias alternativas, pseudociência, fenômenos paranormais e dogmas religiosos tem afetado gente melhor e mais preparada do que eu. Com o presente artigo procuro retificar – um tanto tardiamente, reconheço – aquela omissão da juventude.


Hahnemann, Pai da Homeopatia


Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1755-1843), o criador da doutrina homeopática, foi um grande médico. Quando começou a formular os princípios da homeopatia (do grego homeo, semelhante, e pathos, sofrimento ou doença), em fins do século 18, o horror que nutria pela medicina tradicional de seu tempo era justificado. Entre os recursos médicos da época contavam-se a aplicação de sanguessugas, os enteroclismas (lavagens intestinais), as sangrias, a administração maciça de drogas perigosas e outros métodos invasivos que geralmente faziam mais mal do que bem. Hipócrates foi a inspiração de Hahnemann para a lei dos semelhantes. Disse ele: "Há doenças que são tratadas pelo similar, outras pelo contrário. Tudo depende da natureza da doença". A noção de que a maioria das doenças pode ser curada pelos mesmos agentes que a causam também é encontrada na medicina chinesa. Se a cura do semelhante pelo semelhante prenunciava-se em Hipócrates, em Paracelso ela era explícita. Foi ele o autor da frase similia similibus curantur, erroneamente atribuída a Hahnemann. Como Hahnemann conhecia perfeitamente o latim e o grego antigo, podemos crer que bebeu de primeira mão dessas fontes clássicas, embora haja quem discorde.


Partindo de observações feitas a partir do uso do extrato de quinino, que, usado em pessoas sadias, parecia produzir os mesmos sintomas da doença que era usado para tratar a malária – chamada então de febre dos pântanos –, Hahnemann formulou o primeiro axioma da homeopatia, conhecido como Lei dos Semelhantes. Outros dois axiomas da homeopatia são a Lei do Remédio Único, que estabelece que o remédio mais eficaz é a substância pura que produza os mesmos efeitos da doença a combater, aplicada em dose única; e a Lei da Dose Mínima, ou dos Infinitesimais, que diz respeito à diluição do princípio ativo, o famoso e controverso princípio do "quanto mais diluído mais forte".


Sem Paralelo


A diluição, chamada em homeopatia de potencialização ou dinamização envolve uma sequência progressiva de diluição e agitação rítmica, a chamada sucussão. A primeira diluição é obtida adicionando-se uma parte do princípio ativo a nove partes de solvente, geralmente água ou álcool. Faz-se em seguida a sucussão percutindo-se ritmicamente o frasco com a solução contra um anteparo, geralmente uma tira de couro. A potência da solução obtida é de 1DH na escala decimal hahnemanniana, ou seja, uma parte em dez. Para obter-se a potência 2DH, no mesmo sistema decimal, mistura-se uma parte da solução anterior em nove de água, o que resulta em solução com uma parte de soluto em 100 (1 seguido de dois zeros) de solvente. Similarmente, obtém-se as potências seguintes, de 3DH até diluições extremas como 30DH, ou seja, 1/1030, uma parte de soluto em volume de solvente representado pelo número um seguido de trinta zeros.


Embora as diluições mais usadas estejam entre 6DH e 30DH, a coisa não para por aí – há diluições ainda maiores. Além da escala decimal, representada por DH, existem outras. A escala centesimal hahnemanniana, por exemplo, representada por CH, é bastante usada. Na escala centesimal, uma solução 1CH é 1/100, 2CH é 1/10.000, 3CH é 1/1.000.000, e assim por diante. São comercializados remédios homeopáticos que vão até 200CH, ou 1/100200. Diluições tão altas escapam à compreensão, por não terem paralelo em nossa experiência comum. Os exemplos das seções seguintes talvez ajudem e surpreendam.


Hahnemann e Avogadro


Hahnemann foi contemporâneo de Amadeo Avogadro (1776-1856) mas certamente não conheceu o trabalho do grande químico e físico italiano. O Organon foi publicado um ano antes da formulação da hipótese de Avogadro; muitos anos antes, portanto, da determinação do número que veio a ser conhecido por Constante de Avogadro. Avogadro descobriu que o número de átomos ou moléculas em um mol de uma substância qualquer é constante. Esse número – determinou-se mais tarde – é igual a 6,022137 x 1023. Um mol, ou molécula-grama, é o equivalente em gramas da massa molecular da substância. A massa molecular da água, por exemplo, é 18, pois a molécula da água, H2O, contém dois átomos de hidrogênio, de massa atômica 1, e um átomo de oxigênio, de massa atômica 16. Assim, há exatamente 6,022137 x 1023 moléculas em 18 gramas de água.


As leis da química permitem determinar a solução mais diluída que pode ser preparada sem a eliminação completa da substância original. Estatisticamente, só é garantida a presença de pelo menos uma molécula do princípio ativo em soluções mais concentradas do que uma parte de soluto por volume equivalente à constante de Avogadro de partes de solvente, ou seja, 1 parte de soluto por 6,022137 x 1023 partes de solvente. Isso quer dizer que a partir das potências homeopáticas 24DH ou 12CH, ou 1 parte em 1024, a chance de existir uma única molécula do princípio ativo no medicamento é quase nula, e diminui ainda mais com a elevação da potência.


Sucussão da Pororoca


O Amazonas, maior rio do mundo, por onde passa um quinto de toda a água da superfície do planeta, descarrega no mar cerca de 175 mil metros cúbicos de água por segundo. O volume é tanto que a 150 km de sua foz as águas do mar ainda são menos salgadas devido ao enorme volume de água despejado pelo rio. Fazendo as contas, verificaremos que a vazão do Amazonas é igual a 1,75 x 1011 centímetros cúbicos por segundo. Um centímetro cúbico de água contém aproximadamente quinze gotas; a vazão em gotas por segundo é, portanto, de 2,63 x 1012. Na diluição homeopática 30DH, uma parte de princípio ativo – digamos, uma gota – é diluída em 1.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000 gotas de água. Para despejar essa quantidade de gotas, o Amazonas levaria cerca de 3,81 x 1017 segundos, ou seja, 12.079.920.756 anos. Imagine que fosse possível arranjar um meio de conter toda essa água, que é equivalente a milhares de vezes o volume de todos os oceanos da Terra. Para chegar à diluição 30DH seria só pegar um conta-gotas, ir até a foz do Rio Amazonas, no Pará, pingar uma gota de princípio ativo no rio e aguardar pouco mais de 12 bilhões de anos até a diluição final. E esperar que a pororoca se encarregue da sucussão.


O Pato de 20 Milhões de Dólares


Se o leitor ficou surpreso com o cálculo acima, apresento outro ainda mais surpreendente, este de Robert L. Park, físico da Universidade de Maryland, nos EUA. Um produto chamado Oscillococcinum, produzido a partir de fígado e coração de pato, é comercializado na potência 200CH. Se uma única molécula da substância original pudesse estar presente no produto final, sua diluição seria de 1 por 1 seguido de quatrocentos zeros – um número maior do que o número estimado de átomos em todo o universo conhecido, que não é mais do que um mísero googol, ou seja, 1 seguido de apenas 100 zeros. O Oscillococcinum é vendido como tratamento para os sintomas de gripes e resfriados. A revista americana U.S. News & World Report (17/2/97) observou que um único pato seria suficiente para fabricar o estoque anual do produto [o fígado de apenas um pato poderia, na verdade, servir para fabricar todo o estoque do produto até o fim dos tempos], cuja venda total foi de 20 milhões de dólares em 1996. Como se vê, a popularização do uso do Oscillococcinum não chega a ameaçar os patos de extinção.


Os remédios homeopáticos para uso interno são ingeridos na fórmula de glóbulos, tabletes, pó ou diretamente na forma de solução hidroalcóolica ou aquosa. As formas sólidas – glóbulos, tabletes e pós – são fabricadas pingando-se uma gota da solução diluída sobre um veículo inerte, geralmente sacarose ou lactose. Park calculou que, para ter certeza de ter ingerido uma única molécula da substância medicinal presente na potência 30DH, seria necessário ingerir dois bilhões de tabletes, cerca de mil toneladas de lactose mais as impurezas que a lactose porventura contenha.


Os fatos apontados acima são entendidos e aceitos pelos homeopatas. O próprio Hahnemann percebeu que provavelmente nenhuma molécula da substância original restaria após essas diluições extremas – as chamadas diluições ultra-moleculares. Hahnemann acreditava, no entanto, que a ação vigorosa da sucussão deixa no solvente uma "essência espiritual imperceptível aos sentidos" que estimularia as "energias vitais" do corpo. Se hoje esse tipo de linguagem soa pouco científica, no tempo de Hahnemann ela podia-se justificar. Basta lembrar que seus colegas de profissão ainda falavam em extrair o sangue mau e balancear humores.


Mais do Que Uma Vaga Lembrança


Alguns proponentes atuais da homeopatia, incapazes de contestar a realidade física da constante de Avogadro, afirmam que mesmo quando desaparece a última molécula do principio ativo, sua "memória" permanece na solução. O assunto, antigo, ganhou vida nova em 1988 quando Jacques Benveniste e seus colegas publicaram na prestigiosa revista Nature um trabalho que parecia indicar que anticorpos diluídos em soluções de até 30DH – bem acima do limite teórico de Avogadro – ainda conseguiam produzir respostas biológicas (Nature 333: 816, June 30, 1988).


Benveniste atribuiu essa propriedade à "memória" da água, que, após a sucussão, ainda se "lembrava" dos anticorpos que encontrara antes embora não existisse uma molécula sequer deles na solução diluída. Diante do ataque da comunidade científica ao artigo, o editor da revista, John Maddox, disse em editorial duvidar do acerto das conclusões de Benveniste, mas que as publicara assim mesmo em nome do livre intercâmbio de ideias.


A controvérsia gerada levou a Nature a nomear uma comissão científica para investigar o caso. Concluiu-se que os procedimentos de Benveniste careciam dos procedimentos rigorosos que devem orientar a pesquisa científica. O experimento de Benveniste nunca foi reproduzido com sucesso por pesquisadores sérios e, com o tempo, Benveniste começou a cair em desgraça. Na percepção de seus colegas, Benveniste passou de cientista respeitado a doido varrido, perdendo verbas de pesquisa e seguidores fora do círculo de homeopatas radicais. O próprio Benveniste não coopera muito com os que tentam resgatar-lhe a imagem, pois sua última descoberta é que a vibração das moléculas pode ser captada, gravada e enviada por telefone, produzindo efeitos à distância. Por essa contribuição, Benveniste ganhou o Prêmio IgNobel da Universidade Harvard, atribuído anualmente a pesquisas estapafúrdias.


A Falta de Memória da Água


Concedendo o benefício da dúvida aos que acreditam que Benveniste seja mais um mártir da arrogância da ciência oficial, esforcemo-nos para acreditar, por um breve momento, que a água consiga, de alguma forma, "lembrar-se" de outras moléculas com que tenha tido contato. O que deveria nos surpreender neste caso não é a memória, mas a falta de memória da água. A água que existe no mundo já viu muita coisa; já foi nuvem, mar e rio; já foi arrastada em enxurradas desde a cidade de Ur na Mesopotâmia até a favela da Rocinha; já passou pela banheira de Cleópatra e pela bexiga de Júlio César; já escorreu pela fronte de Napoleão e pelas cachoeiras da Casa da Dinda. Espanta que tenha se esquecido de tudo o que viu. Continuemos, no entanto, a demonstrar a nossa boa vontade para com os homeopatas e assumir que a destilação faça a água "esquecer" as moléculas que tenha encontrado em seu passeio através dos tempos. Vamos também fazer de conta que a destilação elimina todas as substâncias dissolvidas na água, o que não é verdade. O que dizer então da contaminação no momento do preparo? O que acontecerá se uma partícula de impureza atingir a água no momento anterior à sucussão? É fácil imaginar como isso pode acontecer no laboratório de manipulação. Vamos a um exemplo.


A fabricação de semicondutores exige extrema atenção quanto ao nível de partículas presentes no ambiente. As salas limpas são classificadas como classes de pureza 1, 10, 100, 1000, 10.000 ou 100.000, dependendo do número de partículas de até 0.5 ?m por pé cúbico de ar. Para se ter uma idéia o que isso significa, o limite de visibilidade do olho humano é de 50 ?u, cerca de metade da espessura de um fio de cabelo. Semicondutores são fabricados em salas limpas de classe de pureza melhor do que 100, onde a exposição de qualquer parte do corpo humano não é tolerada. A razão dessa precaução somos nós humanos, animais sujos, que deixamos um rastro de resíduos por onde passamos. Estima-se que em sessenta segundos uma pessoa imóvel gere cerca de 100 mil partículas – fragmentos de pele, sal, gotículas de óleo, umidade, desodorante e cosméticos – de tamanho suficiente para danificar um circuito integrado em fabricação. Pois bem, ainda que os remédios homeopáticos fossem preparados numa sala limpa de classe de pureza máxima, a chance de haver mais partículas estranhas do que moléculas do princípio ativo na preparação final seria grande. E os laboratórios de manipulação, como se sabe, estão longe de rivalizar com a Intel em matéria de limpeza. Como é que a água sabe distinguir o que é princípio ativo e o que é uma molécula de enxofre do xampu da preparadora? Como distingue, na memória, a molécula do fígado de um pato das milhões de moléculas orgânicas que o preparador despeja no ar pelo mero ato de respirar?


É melhor retomarmos aqui o nosso ceticismo científico, pois a crença nos axiomas da homeopatia exige o abandono do pensamento que conduziu a ciência e a tecnologia a onde se encontram hoje. Retomemos também a reportagem da Folha de S.Paulo.


O Que Dizem os Homeopatas


Quanto a reação à crítica científica da especialidade, há homeopatas que dizem ter tirado de sua experiência clínica com a homeopatia demonstrações suficientes de sua eficácia como método terapêutico e há os que insistem em achar um arremedo de explicação científica para essa crendice do século dezenove. Os primeiros beneficiar-se-iam da revisão de alguns conceitos de estatística, método duplo-cego e efeito placebo. É fato conhecido que em experimentos duplo-cego – em que nem o experimentador nem os sujeitos do teste sabem quem está tomando o medicamento e quem está tomando o placebo – uma parte significativa dos que tomam o placebo apresentam melhora de seu quadro clínico. Quanto ao segundo tipo, os que tentam justificar cientificamente a homeopatia, não há o que dizer – a posição é insustentável. As explicações oferecidas para o mecanismo de ação da homeopatia não passam pelo escrutínio de um aluno de primeiro ano de física. Teorias difíceis e mal compreendidas como a física quântica e o princípio da incerteza de Heisenberg são misturadas a crendices extemporâneas e oferecidas como explicação. Isso quando não falam de "forças ainda não descritas pela ciência, que só agora começam a se compreender".


Os especialistas ouvidos pela Folha não parecem ser radicais e recomendam a homeopatia em associação com outros tratamentos. Esse é um bom conselho. O tratamento homeopático não oferece perigo algum quando se trata de gripe branda ou resfriado: o que medicina cura em uma semana, a homeopatia cura em sete dias, já que o tratamento convencional também é ineficaz para aqueles males. O caso é outro, porém, quando se usa a homeopatia para tratar de doenças que possam deixar sequelas ou mesmo causar a morte. Um dos websites homeopáticos que consultei para escrever este artigo aconselha, num raro momento de sabedoria: "Nas doenças infecciosas graves como na meningite, tuberculose, febre tifoide, é conveniente a utilização concomitante com os antibióticos". Não poderíamos deixar de concordar, com uma pequena mudança na redação. Em caso de doenças graves aconselha-se usar o remédio indicado pela medicina científica. Se a crença do paciente exigir, o tratamento pode ser complementado com homeopatia, simpatia, florais de Bach, promessas a Ossanha ou orações a Nossa Senhora de Aparecida.

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José Colucci Jr. é engenheiro mecânico pela Unicamp, mestre e doutor em bioengenharia, ex-professor da USP, vive atualmente em Boston., Estados Unidos


Homeopatia O Maior de Todos os Embustes ||| Notas sobre um Congresso de Homeopatia


Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa, publicado no Quackwatch em 18 de ferereiro de 2001.

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Fernando_Silva
2023-Agosto-8
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Manual do homeopata mirim
Observatório da Imprensa - Feitos & Desfeitas - 05.12.2001
José Colucci Jr., de Boston
Amiguinho, na matéria "O que é a homeopatia", publicada na seção Ciência do caderno Estadinho (O Estado de S.Paulo, 24/11/01), você aprendeu como a homeopatia funciona e como são feitos os remédios homeopáticos. Com este artigo aqui no Observatorinho você irá, brincando, ampliar os conhecimentos adquiridos naquela leitura. Vamos brincar de homeopata. A diferença é que, ao contrário do Estadinho, eu acho que você já pode exercitar o pensamento crítico. Pensar é coisa que se aprende em criança, como se aprende a nadar e andar de bicicleta. Vamos à brincadeira.
O remédio de mentirinha
Quando pequeno eu gostava muito de brincar de médico com as minhas primas. Meu tio, o pai delas, ficava bravo quando nos pegava brincando, e acabava logo com a brincadeira – talvez por medo que alguém se machucasse. Não se preocupe. Brincar de homeopata é seguro, pois, como você verá, na homeopatia não há injeções.
Primeiro é preciso preparar o remédio de mentirinha. Arranje uma porção de frascos de plástico, com tampa, e uma colher. Não use vidro. Vidro pode quebrar e machucar a sua mão. Os frascos têm de estar bem limpos. Coloque cem colheres de água no primeiro frasco e acrescente uma colher do remédio.
Que remédio? Ora, que pergunta! Você aprendeu no Estadinho que "o que pode fazer mal também pode curar". Assim, pegue uma substância que cause em pessoas sadias os mesmos sintomas da doença a ser tratada. Por exemplo, para curar doenças que causem vômito, use uma substância que cause vômito em pessoas sadias, como, por exemplo, creolina – aquele desinfetante fedido que a sua mãe usa na casinha do cachorro. Daqui em diante vamos chamar essa substância de princípio ativo. Não use veneno para matar rato como princípio ativo. Não é que tenha perigo; nas diluições que usaremos nada tem perigo. É que você pode errar na receita e matar algum amiguinho.
Pois bem, como dizíamos, coloque cem colheres de água no primeiro frasco e junte uma colher de princípio ativo. Tampe e chacoalhe bem. Não se esqueça dessa parte, pois os homeopatas atribuem a ela uma grande importância. É a chamada sucussão, que faz as moléculas da água absorverem a "essência" do princípio ativo em sua memória. Se você não sabia que a água tem memória, ficou sabendo agora. Tem, e é muito boa; tanto que só se lembra do que quer.
A melhor maneira de fazer a sucussão, segundo os homeopatas, é golpear o frasco cem vezes contra um objeto macio. Eles usam uma tira de couro, nós podemos usar um travesseiro. Essa é a primeira diluição, chamada C1. Vamos às próximas diluições.
Junte uma colher da solução diluída do primeiro frasco, C1, a cem colheres de água no segundo frasco. Agite o segundo frasco cem vezes. Essa é a diluição C2. Coloque cem colheres de água no terceiro frasco, junte uma colher da diluição C2 e agite cem vezes. Essa é a diluição C3. Prossiga assim, diluindo cada vez mais. Quando você chegar ao sexto frasco, C6, a solução estará tão diluída quanto a água de uma piscina olímpica onde pingou-se uma gota de Creolina. Nessa concentração, a piscina tem mais moléculas do xixi do seu irmãozinho do que de creolina. Não pare por aí. Como futuro homeopata você tem de aprender que "quanto mais diluído, mais cura". Aumentando a diluição, aumentamos a potência do remédio. Vejo pela sua cara que você não acredita. Até parece que você não lê o Estadinho. Se continuar a pensar racionalmente você nunca será um bom homeopata.
Evite respirar
Continue diluindo. Evite respirar, pois daqui para a frente a sua respiração introduz no frasco mais moléculas ativas do que as já presentes na solução. Pare quando chegar ao décimo segundo frasco. Olhe para a água. Você vê alguma coisa diferente? Não? Experimente umas gotas. Sente algum gosto estranho? Claro que não, pois na diluição C12 não existe uma só molécula do princípio ativo na solução. Essa diluição equivale aproximadamente a uma gota de princípio ativo dissolvida na água de todos os oceanos da Terra. Se você prosseguir diluindo, como fazem os homeopatas, estará misturando água com água.
Mas aí vem o chato do Juquinha, aquele seu amigo que gosta de ciência. Se ele duvidar da eficácia do nosso remédio, responda à altura. Mostre o quanto ele é limitado em sua visão convencional dos conceitos de química e biologia. Explique que o processo de sucussão "promove o armazenamento de energia da região infravermelha do espectro nas ligações moleculares do solvente" e que essa energia é "liberada pelo contato do solvente com a água dos organismos vivos". Eu sei que nem você nem eu entendemos essa explicação. O nosso consolo é que o homeopata que a formulou também não, do contrário jamais teria dito tamanha asneira.
Deixe o Juquinha de lado. Esses escravos da lógica não tem futuro. Quando crescer, aposto que ele será um desses médicos que só aceitam a medicina baseada em evidências. Certamente passará a vida trabalhando num hospital do SUS.
O remédio que acabamos de preparar é muito parecido com o remédio homeopático chamado Kreosotum. Arranje um rótulo para o frasco da última diluição e escreva nele: Kreolinum C12, pois a homeopatia usa nomes em latim. O remédio chamado Natrum Muriaticum, por exemplo, é cloreto de sódio, ou sal de cozinha. Aposto que você, com a sua cabecinha de criança, nunca imaginou que, bem diluído, o mesmo sal que a sua mãe põe nas batatas pode ser usado para curar doenças como úlcera, anemia, febre, tosse comprida e varizes. Não faça essa cara de cético, menino. Desse jeito você vai virar colega do Juquinha no corpo clínico de algum hospital público.
A consulta homeopática
Agora que você já tem o remédio de mentirinha, é preciso arranjar um livro de mentirinha. Pegue um bem antigo, de preferência com as páginas já amareladas. Escreva na capa, em letras caprichadas, Materia Medica. A primeira Materia Medica homeopática foi publicada por Samuel Hahnemann, o criador da doutrina, há exatamente cento e oitenta anos. Na época de Hahnemann, os tratamentos médicos convencionais incluíam drogas perigosíssimas, lavagens intestinais, sangrias e aplicação de sanguessugas. Eu não sei você, mas se eu vivesse naquela época preferiria me tratar com o Dr. Hahnemann. Afinal, a maioria das doenças acaba se curando sem tratamento algum. Tenho calafrios só de pensar em uma porção de vermes grudados nas minhas costas, a me chupar o sangue.
Felizmente, a medicina mudou bastante desde 1821. Eu nunca fui tratado por médico que usasse sanguessugas, e olha que eu sou bem mais velho do que você. Os homeopatas, porém, não mudaram muito. Para eles, os princípios de Hahnemann continuam valendo. A Materia Medica que tenho em mãos – escrita por Clarke em 1900, mas ainda bastante usada – diz que o próprio nome latino materia é inapropriado, pois o homeopata lida com "forças de ordem muito mais alta do que as conhecidas da velha física". Não sei por quê, mas a frase me faz lembrar da minha tia Suzi, cuja casa cheira a incenso de patchuli.
O remédio que acabamos de preparar, como eu disse, é parecido com o Kreosotum. Vamos ver lá na Materia Medica para quê serve. O Kreosotum é indicado para dentes cariados, doenças das gengivas, vômitos, certas doenças do estômago e feridas que sangrem muito. Como o remédio é de mentirinha, receite-o para alguém de mentirinha, como uma boneca ou um ursinho de pelúcia. Não!, melhor, receite-o para a sua avó, que está sempre imaginando doenças. A homeopatia é comprovadamente eficaz na cura da hipocondria.
Boca fechada
Percebo pela sua cara que você está começando a desconfiar que uma gota de remédio dissolvida em várias vezes o volume de água do Rio Amazonas não pode ter efeito fisiológico. Admiro o seu raciocínio, bem mais arguto do que o de muitos adultos, mas fique de boca fechada. Se você quer ser médico, tem que aprender a não falar mal dos colegas de profissão. É que a homeopatia, como você aprendeu no Estadinho, é reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina. A grande maioria dos médicos não acredita nela, mas evita falar mal dos homeopatas para não ferir a ética profissional.
Esse negócio de não poder falar mal dos colegas de profissão é realmente estranho. Coloca-se com isso o interesse de uma classe acima do interesse público. Dou um exemplo. Quando eu estava terminando este artigo, a Revista IstoÉ de 27/11/2001, publicou a matéria de título "Seleção Esotérica". A matéria explica como a numerologia e a astrologia estão sendo usadas na seleção de candidatos a emprego. Isto é, tem gente competente sendo discriminada porque foi batizada com o número errado de letras, ou porque o obstetra atrasou a cesariana. Segundo a IstoÉ, várias empresas se utilizam de técnicas esotéricas na seleção de pessoal e administração. Entre os especialistas das "técnicas alternativas" de recursos humanos citados na reportagem estão dois engenheiros e uma arquiteta. Eu gostaria muito de dizer o que acho desses picaretas, mas não posso. É a ética, entende?
Vamos parar de brincar, que a sua mãe está chamando. Na semana que vem inventaremos uma brincadeira nova. Estou pensando em algo assim como o Manual do Pequeno Numerólogo, ou O Guia da Criança Astróloga. Por enquanto, vá providenciando a parte mais importante: os clientes. Arranje uma porção de crianças bobas, mas bem bobas mesmo. Peça para trazerem o dinheiro da mesada. Um abraço do tio Zezé.
Engenheiro. E-mail: j.colucci@rcn.com


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