Cameron
Quando isso aconteceu? Que evento, que período, o jornalismo morreu e foi sequestrado pela corja mais doentia e fanática do mundo moderno?
Acho que antes de tentar responder essas perguntas é preciso definir os conceitos e estabelecer certas distinções, e talvez reformular as perguntas de maneira a evitar viciar as respostas.
Uma primeira pergunta básica é o que é o jornalismo em si, enquanto atividade de comunicação social com atributos próprios, descritos em termos daquilo que permite distinguir o jornalismo de outras atividades de comunicação social (e.g. disseminação de rumores, educação, marketing comercial, propaganda política, proselitismo religioso, anúncios oficiais, etc.). Dessa pergunta podemos tentar tirar a idéia de porque o jornalismo existe, a que finalidade ele atende, enquanto atividade ideal e isolada de outras formas de comunicação social.
Tendo isolado os atributos ideais do jornalismo, é preciso entender quais os incentivos sociais para que algo que aproxime essa idéia seja praticado, i.e. que um jornalismo de fato exista e não se degenere em uma das outras formas de comunicação social. Quais são os fatores que levam um jornalista a reportar um fato assim ou assado ou oferecer opinião desse ou daquele tipo, e o que o leva a talvez desviar de uma apresentação mais objetiva ou criteriosa daquilo? E uma outra questão que pode ser interessante é como o julgamento que se faz da qualidade do jornalismo praticado numa determinada época pode ser feito de forma razoavelmente objetiva. Por exemplo, quanto da impressão que temos de que o jornalismo era mais sério no passado é de fato uma consequência da degeneração ética de jornalistas, ou é um artefato da ausência no passado de fontes alternativas que permitissem a comparação entre as reportagens feitas pelos jornais estabelecidos e os fatos que eles reportavam ou deixavam de reportar?
Quais são os tipos de jornalismo que existem, em termos de temas e de abordagem? Por exemplo, dentro de um tema como política ou cultura existe a reportagem dos fatos "relevantes", que são selecionados por um critério editorial, que tenta ser objetivo dentro dos limites de espaço e recursos existentes. Esse componente pode ser reativo ou pro-ativo, i.e. o jornal pode reportar fatos que chegam a eles por fontes existentes ou pode tentar investigar e chegar até fatos que não foram explicitados. Existe também um componente de análise crítica ou opinião, que é mais subjetivo e idiossincrático ao jornalista ou comitê editorial. E esses componentes podem estar mais ou menos misturados num mesmo conteúdo jornalístico. Uma outra distinção que pode ser útil é entre as diferentes escalas e organizações que se entendem por jornalisticas, assim como os meios de comunicação usados, em função das tecnologias de distribuição de informação disponíveis (e.g. imprensa, rádio, televisão, internet). Dependendo da época, é os canais de distribuição de informação para a massa podem estar mais ou menos centralizados, i.e. efetivamente controlados por um número maior ou menor grupos de interesses distintos - e em que medida isso afeta a qualidade do jornalismo que é consumido pela população.
Há também uma dinâmica externa, da evolução dos valores e expectativas de uma população vis-a-vis às suas elites políticas, culturais e corporativas, que são os principais objetos de interesse jornalístico. O jornalismo é parte desse processo, mas também é a educação secular, a produção artística e cultural, e a religião, e cada um desses setores é direcionado por interesses políticos e econômicos organizados em torno de agendas ideológicas, visando orientar e instruir as novas gerações de maneira a adotarem atitudes e interesses desse ou daquele tipo. O jornalismo em parte influencia e em parte se adapta ao que esse consumidor de notícia se transforma.
Tendo criado um modelo mental a partir de primeiros princípios para o jornalismo é importante ver a dinâmica histórica do jornalismo dentro desse modelo, para se determinar se determinar se a qualidade do jornalismo piorou como um todo, ou se piorou dentro de algumas instituições jornalísticas específicas, ou se o que piorou foi a impressão que podemos formar do jornalismo a partir de informação apreendida por outros meios.
Me parece que o jornalismo institucional sempre foi numa medida maior ou menor enviezado por interesses políticos e econômicos que de certa forma controlavam direta ou indiretamente essas instituições. Por exemplo, o filme Cidadão Kane mostra como o jornalismo marrom do fim do século XIX e começo do século XX descaradamente publicava fake news, causando por exemplo a guerra entre Estados Unidos e Espanha pelo controle de Cuba. Outro exemplo era a relação bastante cordial entre o New York Times e o regime soviético stalinista nos anos 20 e 30, em que jornalistas premiados viviam hedonisticamente em Moscou com todas as regalias pagas pelo Kremlin desde que reportassem apenas uma versão fantasiosa do comunismo para os americanos. Ao longo do século XX esse padrão operacional foi repetido em diversas ocasiões no Ocidente como um todo.
Mas no passado a impressão desse controle talvez fosse menor, dado o monopólio local efetivo dessas instituições. As pessoas apenas liam o jornal da sua cidade, ou assistiam ao noticiário do único canal de televisão aberta que tinham. Sem muitas fontes alternativas para comparar com o que estava sendo reportado ou opinado elas tomavam as reportagens e opiniões como factuais e objetivas, e a cobertura dos fatos jornalísticos como exaustiva. Claro que na medida em que coisas pudessem ser observadas diretamente ou comunicadas por rumores orgânicos mesmo esse jornalismo tinha alguma competição externa que o forçava a ser minimamente realista ou objetivo, assim como competição interna entre diferentes jornais locais ou canais de televisão aberta, mas ainda assim eles tinham um poder enorme de estabelecer a narrativa oficial sem ser incomodados.
Na medida em que a internet se disseminou e permitiu a distribuição direta conteúdo jornalístico não local e/ou independente de instituições estabelecidas de jornalismo, algumas mudanças nesse regime ocorreram, em particular permitindo a percepção maior dos viezes que os canais estabelecidos já tinham ou assumiam. Além disso, com o consumo de notícias sendo mais dividido com essas outras fontes, esses canais estabelecidos perdem receita, reduzindo o custo em divisões caras, como jornalismo investigativo, e transferindo recursos para setores baratos e convenientes, como opinião. A competição acabou forçando a adaptação dessas instituições estabelecidas para um modelo menos jornalístico e mais propagandístico, dado que o dinheiro no jornalismo propriamente dito estava mais disputado.